terça-feira, 8 de dezembro de 2009

António Malvar

Em todas as modalidades desportivas, existem personagens que pela sua postura e dedicação se tornar ícones e míticos, daí resolver realizar esta dedicatória a uma dos nomes sonantes do BTT em Portugal, a António Malvar.
Já tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Antonio Malvar, pois o meu Garmin Oregon foi adquirido na sua loja e pude aprender algumas dicas sobre GPS. Mas como este mundo é muito pequeno mesmo, dei-me conta à bem pouco tempo que estou actualmente a trabalhar com a sua filha… engraçado, as voltas que este mundo dá!


Os dois textos que se seguem, são da autoria do António Malvar, uma autêntica pérola do BTT!!!


10/09/1996 - Felicidade é....


Os ciclistas de montanha, ou melhor, os utilizadores de Bicicletas de Montanha neste país, são uma minoria numa sociedade de costas viradas para os interesses óbvios da expansão deste movimento e que teimosamente ignora ou evita reconhecer as vantagens sociais que advêm duma maior profusão desta modalidade desportiva e ou forma de ocupação dos tempos livres.Mas não é minha pretensão hoje e aqui aprofundar o lamento procurando as razões e apontar as culpas para este estado das coisas, até porque culpas temos nós também e as razões são bem mais ancestrais do que o que conseguimos apurar. É sim o meu intento analisar esta minoria que cresce todos os dias e que vai abraçando o movimento das formas mais variadas, algumas até peculiares. A bicicleta é o elemento comum de entre todos mas a forma de estar é tão diversificada que chego à conclusão que para além da bicicleta o único que é ainda igual em todos é o “ser feliz”.

- Felicidade para uns é poder pegar na bicicleta e desbravar esses trilhos e caminhos do Portugal esquecido, sozinhos ou na companhia de amigos, contactando as simpáticas e hospitaleiras gentes dessas nossas aldeias mais remotas e ignoradas, num fim de semana ou ao longo das férias, em total esquecimento e numa profunda paz interior.

- Felicidade para uns é poder participar em competições, para conquistar um lugar entre os primeiros, daí: fama, reconhecimento, taças medalhas e dinheiro.

- Felicidade para uns é participar nos passeios que se organizam aos fins de semana em diversos locais do país e assim fazer novas amizades, conhecer outros espaços, outros caminhos, ou simplesmente estar entre os que gostam de andar de bicicleta.

- Felicidade para uns é entrar em competições muito simplesmente para participar sem pretensões a pódios, estar no evento, ao lado dos campeões à partida, competindo consigo próprio, fazer-se chegar ao fim, entrar na mesma volta do primeiro ou ficar à frente do vizinho ou do amigo.

- Felicidade para uns é treinar sem outro objectivo que não seja o de manter-se em forma, pegar na bicicleta e fazer o “ritual” do treino: 1 hora hoje, 2 horas amanhã, todas as manhãs de domingo, etc.

- Felicidade para uns é pegar numas cartas militares e com a bicicleta tentar chegar e passar por onde se planeia sem se perderem, saudavelmente obstinados em se localizarem no mapa a todo o momento e assim passarem horas e dias complemente absortos.

- Felicidade para uns é enfiarem-se por esses caminhos desconhecidos e reconhecê-los para futuramente guiar os amigos e os amigos dos amigos por essas paisagens por eles antes descobertas e preparar guias e roteiros desses trilhos para que muitos outros venham por si só a conhecer esses maravilhosos recantos.

- Felicidade para uns é pegar na bicicleta e com ela aprender e fazer as maiores acrobacias: cavalos, éguas, “bunny hops”, subir pedras, descer escadas, subir escadas, saltos com “tables”, etc.

- Felicidade para uns é domar a bicicleta naquelas descidas técnicas cheias de pedras quase verticais sem pôr o pé no chão, complemente embriagados de adrenalina.

- Felicidade para uns é subir de bicicleta sem desmontar aquela “parede” de piso escorregadio que durante tanto tempo parecia impossível de se fazer, ou fazê-la à frente dos outros do grupo com os pulmões a queimarem e o coração a explodir dentro do peito, mas saboreando o êxtase do sucesso.

- Felicidade para uns é rolar passeando calmamente de bicicleta ao longo das estradas marginais ou das estradas florestais e beber do prazer da brisa da manhã de Domingo na cara, exibindo ou não aquela nova colorida blusa de lycra, ou aquele novo capacete com pala.

- Felicidade para uns é levar toda a família a andar de bicicleta e com eles descobrir uma nova vida em convívio, uma forma mais nobre de ocupar os tempos livres em alternativa à volta saloia de carro, aos centros comerciais, às praias apinhadas de gente e às frustrantes tardes televisivas.

- Felicidade para uns é Ter uma bicicleta de montanha e com isso poder ser reconhecido como um aventureiro, um radical do desporto, um atleta ou como tendo uma forma física invejável.

- Felicidade para uns é comprar a bicicleta mais exótica, construir a bicicleta mais leve, montar a bicicleta mais “high tech” e tê-la imaculada sob uma redoma na sala de estar lá de casa, contemplando-a dias a fio, devorando todas as revistas da especialidade na busca da última criação tecnológica do mais avançado e futurista possível, para montar na sua bem amada. Andar nela não é o mais importante até porque se vai sujar, só se estiver seco, for em bom piso e houver muita gente para a admirá-la.

- Felicidade para uns é pedalar nos grandes charcos e lamaçais destes invernos rigorosos, enterrando-se em lama até à alma num total desprezo pela bicicleta, borrifando-se para centros de pedaleira, cubos, correntes e tanta outra tralha que parece incomodar os outros, e chegar a casa e esquecer-se da bicicleta num qualquer canto da garagem, varanda ou arrecadação.

- Felicidade para uns é poder transportar-se de bicicleta para o trabalho e com uma cara de satisfação ultrapassar os que escolheram ir de carro e que num total desespero esperam impacientes que aquela fila de carros parados na sua frente se mexa, acumulando stress e levando o dobro do tempo a lá chegar.

- Felicidade para uns é saber tudo o que há para saber sobre bicicletas e passar tardes a discutir sobre qual a melhor suspensão, o melhor material de quadro, o futuro das bicicletas de suspensão total ou a actual forma do Tomac, da doença da Furtado e da loucura do Palmer.

- Felicidade para uns é ter uma bicicleta dita barata e levá-la a fazer o que os que as têm ditas caras e sofisticadas não conseguem, e poderem provar que o que verdadeiramente interessa é ter pulmão e pernas.

- Felicidade para uns é ter uma bicicleta dita cara mas que não pareça, sem peças coloridas ou exuberantes mas poder secretamente confidencial com alguns (não assim tão poucos) que aquela bicicleta está avaliada em centenas ou milhares, e daí tirar um imenso gozo.

- Felicidades para uns é viajar de bicicleta indiferentemente de ser em estrada ou em terra em total auto-suficiência durante semanas expedicionando vários países ou regiões engrandecendo o seu conhecimento de outros horizontes, de outros povos e de si próprio.

Felicidade para outros é poder escrever sobre assuntos relacionados com a bicicleta e fazer testes e análises de produtos, de competições e passeios, e recrear em todos uma vontade férrea de pegar na bicicleta e com ela gozar uma ou diversas daquelas formas de felicidade.

Felicidade para mim, e quem sabe, não só para mim, são todas aquelas formas de ser feliz com a bicicleta, um pouco de todas ou um muito de todas.

Neste mundo tão variado da BTT há lugar para todos, sendo cada um feliz à sua maneira, e é errado não respeitar todas aquelas formas de estar porque todas elas são um espelho da felicidade interior de cada um. É errado escarnecer desta ou daquela postura pois isso é ofensivo e não cabe a ninguém julgar sobre qual deve ser o padrão de felicidade que se deva ter com a nossa bicicleta.

Pena é, reconhecer que esta nossa felicidade nem sempre é bem recebida e parece até por vezes ofensiva para quem nas estradas nos dificulta a circulação e não nos respeita, para quem no planeamento urbanístico das vilas e cidades nos esquece, para quem nos dificulta o acesso aos parques naturais sem procurar antes criar condições e formas de coexistência de mútuo interesse, nos rejeita quer directa quer indirectamente em locais públicos só porque nos vestimos e calçamos de forma diferente, que não nos deixa estacionar a bicicleta à porta do café ou restaurante, nos ignora nos meios de comunicação social não fazendo qualquer alusão às nossas actividades, autoridades que querem regulamentar o transporte das nossas bicicletas no nosso carro, Federação de Ciclismo retrograda que não só não protege os nossos interesses como até parece promover esta imerecida marginalização, etc.

Mas afinal quem pode ainda ignorar que não será o veículo de duas rodas sem motor o meio de locomoção por excelência do futuro das nossas cidades e grandes vilas.Animem-se pois, estamos aqui para ficar e sejam felizes, cada um à sua maneira, claro está.


António Malvar




12/08/1997 - Neste nosso mundo do BTT



Neste nosso mundo do BTT, existem muitas formas de estar, ou seja, muitas maneiras de se encontrar felicidade. No entanto, o sentimento de que há algo de comum em todos os praticantes e que vai fomentando esta enorme paixão que muitos exibem pelo tema, nunca deixou de me aguçar a curiosidade e de me fazer observar mais analiticamente aqueles amantes do BTT com quem tenho oportunidade de acamaradar nas passeatas de fim de semana pelos mais belos trilhos deste nosso admirável país fora-de-estrada.

Em 1987 tínhamos uma empresa de Desporto Aventura que entre outras coisas fazia passeios de jipe para turistas na Serra da Arrábida e aos fins de semana competia-me a mim a tarefa de deambular com um UMM carregado de ´´aventureiros´´ pelos caminhos sulcados de valas atravessando ribeiras, subindo e descendo trilhos elameados na Arrábida que todos tão bem conhecemos.

Ora, foi aí que tomei o primeiro contacto com a BTT. Quase sempre na zona da Comenda, fizesse sol ou chuva, encontrava-me com um punhado de (seriam ciclistas?) tipos vestidos com lycras muito coloridas, com um pedaço de esferovite atada à cabeça e montados numas estranhas bicicletas com umas rodas grossíssimas.

Ao cruzar-me com eles acenavam-me um adeus com um sorriso na cara toda salpicada de lama e durante momentos ficava a pensar como poderiam aquelas criaturas estar tão felizes apesar de completamente molhados e sujos de lama até à alma.

Estas imagens ficaram-me permanentemente gravadas na memória e foi sem surpresas que três anos depois dei por mim a negociar a minha primeira bicicleta de montanha e ao montar nela pela primeira vez (na Arrábida, claro!) percebi como era maravilhoso desbravar aqueles trilhos por entre vegetação luxuriante com a brisa da manhã na cara, rolando em silêncio, sem o barulho dos motores à minha volta.

Confesso que desde então fiquei apanhado pela BTT, deixei os jipes e dediquei-me de corpo e alma. Tinha descoberto uma nova paixão e dela contagiei todos os meus amigos.

Mas o que faz verdadeiramente um empresário, quadro superior duma empresa, professor, advogado, médico, levantar-se de madrugada ao Domingo, vestir umas roupas justas enfiar um capacete na cabeça e montado na sua BTT passar o resto do dia a chafurdar em lama, ou esvair-se de suor serra acima, ou ainda fazer apostas com os amigos em como é hoje que se vai mandar na tal descida íngreme ?

O que faz verdadeiramente famílias inteiras pegar no carro numa sexta-feira à noite, montar bicicletas no tejadilho e fazer centenas de kms par um qualquer lugar remoto e passar o fim-de-semana a deambular pelos campos, perdidos o tempo e no espaço, atrás de uma centena de outros que se juntaram no mesmo local para um passeio BTT por “não sei onde”, regressando exaustos com as bicicletas imundas ?

Muito dizem-me que é para se manterem em forma, mas quando os vejo frequentar ginásios, piscinas e fazerem o seu jogging a meio da semana, sinto que à uma outra força estranha que os faz sonhar com o fim-de-semana para pegarem nas bicicletas.

Muitos dizem-me que é pela camaradagem, mas quando os encontro na Marginal bem cedo a treinar sózinhos para que no próximo fim-de-semana subam ao Monge e cheguem primeiro que os colegas, sinto que há algo mais que os impulsiona para cima da bicicleta.

Muitos outros dizem-me que é pelas paisagens, pelo desfrutar da Natureza, para conhecer outros locais, mas quando os vejo guinchando de alegria a saltar por cima de valas ou raízes, descendo vertiginosamente pelos caminhos pedregosos, sinto que há uma outra razão para os levar a não perder um passeio de fim-de-semana ou a dar uma volta com os amigos ao fim da tarde.

Outros ainda dizem-me que o fazem pela competição, correndo o país de lés a lés, treinando afincadamente todos os dias para puderem aspirar àquele lugar no pódio, mas quando os vejo a ´´sacarem cavalo´´ e ´´égua´´ ´´saltos em table´´ ´´bunny hops´´ e a fazerem outros truques enquanto aquecem para a prova, sinto que há dentro deles algo mais que os leva a montar naquelas super BTT´s.

Há os que me dizem que é por os outros os desafiaram e que foi um pretexto para se livrarem lá de casa ao fim do dia ou ao fim de semana, mas quando os vejo a escolherem as poças mais fundas do caminho para as atravessar a toda a velocidade com um ar de gozo e prazer sem fim, sinto que há uma outra verdade escondida que os leva a sujarem todos daquela maneira.

Também há os que me dizem que não é por que seja moda, mas sim porque o médico os aconselhou a fazer qualquer coisa, a mexerem-se, a fazer desporto, mas quando os vejo a comprar um capacete a condizer com a cor da bicicleta, e apresentarem-se aos amigos ao fim-de-semana equipados a rigor com um sorrisinho de prazer nos lábios, sinto que pode ter sido o médico, mas há algo mais que os leva a fazer BTT.

E há ainda muitos (mais do que se possa pensar) que me dizem que o fazem porque sempre fizeram desporto, mas que começaram com aquela dor nas costas, foram ao médico e este lhes disse que tinham de parar de andar de bicicleta por causa daquele “princípio” de hérnia discal a menos que comprassem uma suspensão total.

Mas quando os vejo exibirem o ´´último grito da moda´´ em tecnologia de BTT´s, e passearem-se secretamente de loja em loja na busca da última invenção fruto duma qualquer chafarica americana que produz acessórios de ´´indiscutível´´ qualidade, para pendurarem na sua BTT, sinto que algo mais os leva a perderem o seu tempo devorando as revistas e as lojas da especialidade.

Todos me dizem que o que gostam é de andar de bicicleta, mas quando os me acompanham nos passeios que fazemos e os vejo a sprintar à minha frente, saltar as pedras no meio do caminho, subir às bermas ´´rélévés´´ dos caminhos, descer escadas, lançarem-se a todo o gás pelas descidas rápidas, puxarem o rabo todo para trás nas descidas mais arrojadas, puxar a bicicleta para cima em qualquer pequena lomba, tirar o pé de apoio, ´´à campeão´´, em todas as curvas.

Quando me pedem conselhos sobre suspensões de dupla coroa, quadros em titânio, suspensões totais, rodas em carbono, travões de disco, oito ou nove velocidades, sobre aquele exótico desviador que viram na MBA ou na NET ou aquela barra energética do ´´outro mundo´´ que substitui todas as refeições até ao final da semana.

Quando me procuram para que lhes ensine a saltar para subir passeios, usar pedais de encaixe, descer pequenos degraus ou para que serve e como se usa um monitor de frequência cardíaca, sinto que há algo mais por detrás de toda aquela vontade de fazer BTT, há uma força renovada que os atrai e me atrai à BTT, há em nós um frenesim imparável para montar a bicicleta, há em todos nós uma criança que nunca deixámos de ser e ao voltarmos a senti-la redescobrimos que ainda não vivemos toda a nossa infância e como é bom sentir aqueles pequenos prazeres.

É a criança que há em nós que se solta e ao recreá-la sentimo-nos bem e deixamos de lado todas os pergaminhos e mais não somos que um grupo de crianças divertidas.Na procura dos porquês mais metafísicos fui ignorando o que é tão simples…

Todos fazemos BTT porque isso liberta a criança que há em nós.


António Malvar

1 comentário:

  1. Espero que um dia também dediques um espaço a outro grande Dinossauro do BTT. Myrage é o seu nome :)

    E lembra-te que o incauto de hoje será o empenador de amanhã.

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